por Marcus Telles
Sei que é uma ideia totalmente insana pra nossa cultura, mas. Precisamos verdadeiramente partir de algo como uma amizade incondicional por todos os seres. Nada menos que isso.
Claro que, apresentada tão brevemente, surgem reações óbvias e compreensíveis.
“E quem faz merda?” A amizade é com os seres, não com a ação negativa. É inteiramente possível, por que não?, bloquearmos a ação, mas seguirmos aliados aos seres. É inteiramente possível não termos qualquer contato físico e seguirmos aliados aos seres. Pela lógica da nossa cultura, é como se estivéssemos muito condicionados a atrelar os seres às suas ações. Assim, mesmo que façamos grandes esforços de sutilizar nossa compreensão de vários aspectos do mundo, nos pontos que mexem na nossa narrativa básica de quem somos ainda optamos por modelos meio brutamontes de raciocínio (o identitarismo “eu sou x” tem, implicitamente, a oposição “eu não sou y” ou “eu sou não-y”). O que, no ser, gerou aquela ação? (Não são todas as possibilidades presentes naquela mente incorporada que se manifestam de uma vez só.) Aquilo esteve sempre ali ou surgiu depois? (Então, em que sentido ele “é” isso?) Quais foram as causas e condições que criaram aquela configuração subjetiva?
“Mas vou ficar próximo de quem me ataca?” Entendo a objeção, mas não é isso, e não precisamos ser tão reféns assim de primeiras reações tão preto no branco, como se toda ideia implicasse já num certo conjunto de ações e não pudesse implicar em outra coisa. A aliança não é com identidades, com configurações subjetivas específicas, com nada disso. A aliança é com a dignidade fundamental de cada ser. E a inimizade é com a ignorância, as emoções perturbadoras, a crueldade. Elas nunca se ontologizam, mesmo quando permanecem com a pessoa a vida inteira. A inimizade é, também, com as instituições e estruturas que perpetuam isso. Não com seres, ainda que os seres as manifestem.
Soa ingênuo? Numa cultura que crê em indivíduos com essências, sim. Mas o que passa por essências na verdade são contingências. Essa dignidade básica, ou o que quer que possamos reconhecer dessa forma, não é uma coisa, uma subjetividade por trás de tudo. Nossa aliança é com o espaço que pode manifestar outras coisas. Que vantagem há em acreditar em maluquices ontologizadas, em ser inimigos de fantasmas?
Os seres são fluidos, mas só manifestam outras características se há espaço (na rede de amigos, no bairro, no mercado de trabalho, na cultura) para elas se manifestarem. Por acreditamos pouco ou nada em mudança, por acreditarmos em essências, não abrimos espaço para mudanças e não trabalhamos em criar causas e condições para que os seres surjam de outra forma e se manifestem de outra forma. Aí a profecia “fulano é uma pessoa má” se auto-realiza. A forma como o nosso sistema prisional opera é um exemplo claro disso, mas mesmo as posturas aparentemente progressistas têm versões mais lights desse pressuposto. Por mais que a frase soa torta, ela me parece verdadeira: se os presos têm essa base negativa (i.e., não resumível aos predicados) de dignidade, e se funcionamos melhor como sociedade se estendemos o reconhecimento dessa dignidade a absolutamente todos, então isso também vale para aqueles que manifestam opressões, inclusive as piores possíveis. Somos ativistas mais eficientes se reconhecemos isto. E aí isso vai se manifestar, por exemplo, no abandono pela belicosidade desnecessária com que estamos lidando uns com os outros na mídia e nas redes sociais, isso pra não dizer pessoalmente.
Não é impossível reconhecer que, digamos, um assassino tem uma dignidade básica, mesmo que ele não vá se liberar de seus obstáculos ao longo dessa vida. (Mas, como nem damos a chance, nunca chegamos a saber quais deles se liberariam.) Então não é difícil estender isso pra interlocutores violentos na internet. Somos inimigos dos fatores que causaram essa violência, e é possível, sim, reconhecer que elas chegaram àquele ser pela soma de inúmeras causas e condições, nenhuma pronta, nenhuma imutável. É elas que devem ser combatidas. Isso não é ser bobinho, é potencializar o alcance de nossas ações, é reconhecer que sempre podemos mexer nas condições que produzem os seres: se os seres não são prontos e não existem isoladamente, são sempre afetáveis. Apesar da sensação de superioridade moral que pode produzir, o pressuposto de indivíduos-com-essência é uma condenação desnecessária à impotência.
Nossa intuição, se verbalizada, seria: “Mas essa emoção que surge em mim diz que o inimigo é a outra pessoa inteira, e não algo que ela manifesta — por um tempo e em certas circunstâncias — como consequência de uma certa socialização.” Mas: o que surge diante dos olhos nos parece indicar que a terra é plana, e no entanto a hipótese não resiste a uma investigação mais cuidadosa. A outra pessoa também não é plana.
“Eu lá sou otário de cultivar amizade incondicional por racista, machista, fascista?”. Se houvesse essa entidade, separada de um contexto social, econômico, cultural, resultantes não de padrões formados e impermanentes, mas sim auto-existentes, então seria loucura a ideia de amizade incondicional. Se os seres fossem suas ações, padrões, ideias, e se a postura de amizade básica incondicional fosse se colocar em risco de apanhar, então a ideia seria loucura. Mas aí é o caso de examinarmos se não podemos sutilizar um pouco mais nossos conceitos e nossas reações automáticas. Como sociedade, está sendo vantajoso abordamos uns aos outros já partindo do pior princípio e com o mais hostil dos tons, já abrindo espaço para as piores qualidades e fechando para as melhores, já focarmos em algumas ações negativas e não nas ações (reais ou potenciais) positivas?
Repare como a dinâmica de parte considerável do nosso espaço público envolve o oposto de um princípio como o da amizade incondicional e sem barreiras: a tentativa de encontrar uma ação ou posicionamento negativo específico que, metonimicamente, possa ser tomado como a essência do outro. Esse mecanismo produz um clima de suspeita generalizada em que muitos apontam dedos e, ao mesmo tempo, temem ter os dedos apontados para si. Essa fiscalização ao outro é facilmente internalizada como uma fiscalização de si mesmo e o que poderiam ser conversas produtivas ficam marcadas por hipocrisia e má-fé. Em vez de trazermos à tona nossas confusões, dificuldades, contradições, para vê-las como aquilo que queremos liberar, acabamos por escondê-las de nós mesmos e dos outros, com medo delas virarem a marca do ser horrível que somos e sempre seremos. Onde não espaço para imperfeições, onde se interpreta o que o outro diz sem generosidade, não há conexões genuínas.
Isso talvez seja parte do que grandes mestres como Trungpa Rinpoche (https://goo.gl/XD71Pe) e Elizabeth Mattis-Namgyel (https://goo.gl/17VppF) ensinaram e estão ensinando por aí. Que a nossa cultura possa, mais e mais, beber dessas fontes. Entendemos um tanto sobre estruturas e instituições, mas outras de nossas categorias de análise são muito ingênuas e superficiais. Provavelmente, enquanto tivermos o automatismo “surgiu uma emoção aqui, logo tal característica resume todo o conjunto de potencialidades de manifestação do outro, logo ele é meu inimigo”, não teremos como efetivar na prática as soluções pros problemas que já identificamos. Num nível pessoal, vamos adicionar — em nome do não-adoecimento — ainda mais adoecimento à vida das pessoas. Vendo de fora, parece óbvio que a recompensa de curto prazo das micro-agressões não se compara de modo algum à alegria de quem olha pra todo mundo generosamente, e os resultados da abordagem muito menos. Que possamos testar logo essa hipótese!
(Originalmente, escrevi isto em comentário a esse tuíte aqui, ainda que ele esteja falando sobre outra coisa: https://goo.gl/8dxzSH. Recomendo seguir esse perfil 😉 )
P.S.: O Paulo Carvalho da Silva traduziu essa citação dessa mestrona maravilhosa que é a Elizabeth Mattis-Namgyel:
“Certa vez alguém perguntou ao Dalai Lama o que fazer quando se sentir zangado com outra pessoa. Ele disse: “Tente pensar em mais de duas outras coisas sobre essa pessoa.” No minuto em que saímos da objetificação de alguém, ou paramos de vê-lo como algo unidimensional, estamos entrando na vacuidade.
A capacidade de ver as coisas em toda sua complexidade — como uma questão aberta — é realmente a coisa mais gentil e inteligente que podemos fazer. Ver a plenitude dos outros (ou de todas as situações), em toda sua dor e glória, expressa o maior amor e respeito que podemos oferecer para eles. É um tipo de amor incondicional. Esse tipo de amor tem um efeito profundo em nossas próprias mentes.”
Comentário adicional
Um comentário adicional sobre esse texto. Duas coisas que ele não defende de modo algum: (1) o argumento liberal (no sentido usado nos EUA) de que o “livre mercado das ideias” dá conta de conter o crescimento de formas de vida fascistas; ou, como variante, uma forma de “tolerância com a intolerância”. (2) alguma forma de prescrição sobre como regular a própria rede afetiva.
Afirmativamente:
Sobre (1): a circulação de ideias e a possibilidade de argumentação só surge quando criadas as condições materiais e afetivas, e para isso é necessário bloquear ativamente (ainda que, prefiro, pacificamente) toda possibilidade de violência e opressão. Isso se faz negativamente usando o corpo, o discurso, os meios institucionais; mas não há fuga de se agir afirmativamente, construindo laços, redes, projetos, usando formas de afetar a sensibilidade coletiva. Se o bloqueio ativo das violências físicas e simbólicas é um dos requisitos para a circulação de ideias, outro requisito obviamente é o positivo, de que as pessoas desejem dialogar. E como o desejo surge mimeticamente, precisamos fazer isso antes, com quem já dá pra fazer. Se somos engolidos pelo ressentimento tão em voga, esquecemos desse poder de contágio — que, enfim, existe. Se existe, que vantagem, esperteza, potência surge ao negá-lo?
Sobre (2), o texto fala de uma postura básica diante dos seres, a partir da qual diversas configurações são possíveis. Há vários bons motivos para nos afastarmos de alguém, e o sentido do termo amizade usado aqui não nega isso. Mas creio, sim, que esses bons motivos são contingentes e portanto o afastamento pode partir de uma aliança fundamental com todo mundo. É por reconhecermos que todos querem ser felizes e todos fazem de tudo para ultrapassar o sofrimento que ativamente nos opomos a todo posicionamento que produz sofrimento aos seres. Podemos presumir uma aliança fundamental com todo mundo e nos opor a toda forma de opressão sem qualquer contradição.
De fato, o que fazem os machismos e racismos e fascismos senão manter essa hierarquia implícita dos seres? Se vamos abrir mão dessa hierarquia, por que adotar uma indiferença generalizada (exceto com os poucos seres com quem temos, na prática, uma conexão mais imediata) e não uma aliança generalizada? Com que base concluímos que não podemos nos aliar com alguns aspectos do ser e nos opor a outros? Como pode pessoas que fazem análises tão sutis de fenômenos sociais tomarem a abstração “Sujeito” como um único bloco monolítico e se contentarem em agir com base nela? Se o que nos impele a tal simplificação são os sentimentos de aversão que surgem, por que não incluirmos nossos próprios referenciais internos no conjunto de coisas que precisamos trabalhar para modificar, juntamente com instituições, estruturas, modos de produção? Tem algo atrapalhando — cognitivamente, inclusive — nossa capacidade de ação conjunta e vamos deixar por isso mesmo?
Isso não é negar as configurações da nossa rede mais próxima, mas reconhecer a interconexão mais profunda que afeta muito além da nossa rede. Digamos: temos amigos próximos, mas nossas ações enquanto humanidade continuam afetando toda a biosfera.
Então não vamos nos opor a nada? Sim, vamos nos opor, mas o que nos opomos são aspectos contingentes que chegaram aos seres por meio de socialização, hábitos, ações passadas, e não os resumem. Ao adotarmos oposição, que vantagem há em fazer uma falsa conflação entre os aspectos negativos do ser e todo o conjunto de potencialidades que existem nele?
Ou seja. Acho incrivelmente equivocado o raciocínio, que tenho lido com frequência muito alta, de que “temos que acabar com amizades com eleitores de Bolsonaro sim”. Porque esse raciocínio presume uma dicotomia falsa: OU sou passivo diante de intolerâncias OU uso a inimizade como única forma de ser ativo.
Daí, reconhecer que a dicotomia é falsa nos constrange a uma certa obrigação de como agir? De modo algum. Ela aumenta nossa margem de ações possíveis, apenas isso. Melhor me afastar porque achei melhor, se for esse o caso, e não porque era minha única opção moralmente válida.
Ouvi o podcast #8, em que o entrevistado é o Marcus, e por isso cheguei até esse texto. Sou um ouvinte/fã da proposta de vocês desde o ep.#1, e reconheço que cada um deles tem um grande valor dentro do tema abordado …
Mas, não sei se pelo contato forte com os fatos contemporâneos, ou pela clareza mental que me trouxe, mas particularmente, esse foi o mais impactante, didático e elucidativo episódio que vocês lançaram.
Incrível a riqueza de conexões e referências que o Marcus faz com todo seu vasto conhecimento sobre o assunto, assim como o desenvolvimento do diálogo, a condução objetiva do Daniel, sem aparentemente quebrar o fluxo de raciocínio do demais, os questionamentos em contraponto e relevantíssimos da Kalyne .. ahh, sou suspeito demais pra falar, rs. Ouvir todo o papo dessa lavanderia é um momento de lazer e engrandecimento pessoal sem igual!
Sobre o texto: diante dos atentados ocorridos em Suzano, essa semana, e o de hoje, na Nova Zelândia, tomei a liberdade de imprimir suas ideias, caro Marcus, e compartilha-las em forma de um presente reflexivo com todos os funcionários do meu setor. Elas caíram em mim como uma malha de calma e esperança de que há solução sim pra todo esse caos que vivemos.
Obrigado a todos vocês pelo lindo e importante trabalho. Muita Paz!!