No primeiro episódio, o convidado Gustavo Gitti falou sobre o que seria uma vida com sentido e trouxe sua perspectiva sobre por que a compaixão é o referencial de felicidade mais estável que podemos aspirar ter. Também falou mal sobre a nossa lavanderia, o que não foi lá muito elegante. Bastante ativo nas redes sociais, Gustavo é coordenador da comunidade de transformação online “o lugar” (olugar.org), professor de Taketina, escritor e um entusiasmado praticante budista. Você também pode encontrá-lo e apoiar seus movimentos no site www.gustavogitti.com.
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Trecho da conversa com Gustavo Gitti, transcrito generosamente por Gabriel Guebo, do Citações do Darma
Pergunta: Quanto que a pessoa precisaria se afiliar a algo religioso para seguir um método ou caminho desse jeito que você colocou agora? A gente sente que isso às vezes é um ponto de aversão, de ouvir que isso está ligado a uma religião, ou ao budismo, e isso afasta algumas pessoas. Isso é budista? Esse caminho, por exemplo, o caminho que culmina na iluminação, isso é budista? Isso tem necessariamente um cunho religioso?
Gustavo: O que a gente define como religião, se a gente questionar, questionar e questionar, a gente não sabe bem como que separa religião, ciência e filosofia. Se você questionar qualquer pessoa, ela vai ter problemas em definir o que que é o quê. Porque, de fato, isso tem uma mistura muito grande no nosso mundo.
Eu acho mais interessante pensar na experiência humana. A experiência humana tem muitas qualidades, muitas atividades que parecem mais científicas, mais filosóficas ou mais religiosas. Se a pessoa acha que ela não é religiosa, ela deveria olhar a casa dela. Ela tem um altar na casa dela. Nesse altar, ela cultua alguma coisa. Por um tempo, eu tiver um altar no meu quarto que tinha cremes de massagem, óleos, coisas assim. Era minha religião, meu altar. Tem pessoas que tem uma tela bem grande, que ela cultua aquilo. Às vezes ela cultua Netflix, é a religião da pessoa, o entretenimento. Tem pessoas que tomam o empreendedorismo como religião, e assim por diante. Então a gente tem religião, nós somos seres que têm essa sensação. É difícil a pessoa falar que não é, que não tem essa qualidade. Então, eu iria pela experiência humana.
A experiência humana não é budista, não é taoista. A mente humana não é budista. O sofrimento não é budista. A impermanência não é budista. A transformação da mente não é budista. A estabilidade, a lucidez, a sabedoria, a compaixão, não têm patente budista, nem taoista, nem cristã. Essas qualidades são acessíveis, não importa tanto o método, mas não faz sentido você ignorar os grandes seres da humanidade. Assim como se você quer aprender Neurociência, você não tem porque ignorar: “Ai! Mas isso aí é universidade.” Igual a gente faz com religião. “Ah, não, não, não… eu queria Neurociência… não, universidade não dá pra mim… mestrado… eu não gosto de pessoas que fazem mestrado. E essa parte também, laboratório… pra mim também tenho dificuldade. Eu queria neurociência, mesmo… mas laboratório eu não piso, sabe?!”
Então a gente tem uma visão que é interessante. A pessoa está dentro do laboratório, olhando um cérebro. Quando vem jornalistas e perguntam para esse cientista, eles não perguntam “O que você acredita?”. “Estamos aqui com o cientista, no que você acredita?”. Não. Eles perguntam: “O que você descobriu”. Porque tem uma sensação que tem algo na realidade que eles estão olhando.
Se você pega umas pessoas numa sala de meditação, num templo, elas estão ali por muito tempo, muitas horas. Assim como o cientista está olhando o cérebro, elas estão olhando a mente; essa coisa que a gente baniu da cultura também. Elas estão olhando a mente. Para nós, em geral, parece que a pessoa não está fazendo nada. Quem está olhando um cérebro, “Ah, isso sim, isso é Ciência.” Mas olhar a mente, não. A gente valoriza mais o cérebro do que a mente. Mas essa pessoa que está há muito tempo olhando a mente, quando vem o jornalista, ele não pergunta “O que você descobriu?”. Ele pergunta: “No que você acredita?”. “No que os budistas acreditam?”. Então não é esse o ponto.
O ponto é a gente entender que existe uma ciência em primeira pessoa, que está cada vez mais reconhecida, é só olhar os trabalhos do Instituto Mind and Life. Existe uma ciência em primeira pessoa de investigação da mente. E quando a gente começa a fazer esse trabalho, vamos descobrir que a mente tem esse potencial de compaixão, que não é budista, de sabedoria, etc. Mas quem fez esse trabalho, muitas vezes, está dentro de uma universidade, de uma instituição, de uma organização, que é justamente para chegar até nós os métodos. Imagina como a gente teria acesso a tudo isso que a gente descobriu, sem museus, sem bibliotecas. “Ah, eu quero muito estudar literatura… mas biblioteca, pra mim… eu não passo por esse portão aí da USP, porque…”
Então não faz sentido a gente ter esse pé atras com religião, com templos, com roupas e coisas do tipo. A gente vê um cara vestido todo de vinho, ou açafrão, ou todo de preto, daí a gente: “Ai, ele é religioso”. A gente vê um outro todo vestido de branco [médico] e acha ótimo. Então não tem porque a gente ter esse pé atrás com aspectos culturais e ritualísticos. A gente tem rituais também na nossa cultura. A gente não deveria ter esse pé atrás só porque aquilo é diferente [vindo de outra cultura]. Não é “Ai, é religioso, então eu não posso.”
E uma vez que você começa a entender que você não quer virar budista, você começa a se apropriar, se empoderar desses métodos, pegar para você e fazer aquilo ser vivo e testar, se funciona ou não funciona. Nunca ninguém entra na USP para virar uspiano; se virou, é um problema. A pessoa entra para usar a USP pro caminho dela. Assim também é uma boa relação com o budismo, ou qualquer outro caminho: você usa aquele método. Você não entra para virar budista, você entra para virar lúcido, estável, compassivo. E aí você usa!
Na verdade, a gente não está usufruindo da riqueza da nossa família humana. A gente deveria olhar para todos os seres lúcidos do passado e falar: “meu, tem muita riqueza!” Se essa riqueza chegou para mim por meio das organizações budistas, organizações Tabajara [risos], ou não, não importa. Importa é esse método.
Quanto mais eu olho o método, ou seja, quanto mais, no caso do budismo, quanto mais budista eu viro, menos budista eu viro. Mais eu percebo que não tem nada religioso ali. Tem só assim: “Verifique a sua mente. Experimente tal coisa. Compaixão funciona assim. Veja como você sofre quando é assim.” E assim vai. Não tem crenças ali. Se tiver crenças, descarte; você não está num bom caminho. Mas se quanto mais você arranha, mais aprofunda, menos crença você tem e mais espelho da sua mente e da vida; mais profunda fica tua relação com a vida; mais o budismo te leva para fora dele – isso é um bom caminho.
Esse também é um bom professor. Professor de seita vai levar para dentro dele – muitas vezes de modo real, ele pra dentro de você -, ele não vai te levar para fora dele, para além dele. Um bom caminho vai fazer você descobrir você mesmo, os outros e a vida. A gente poderia entender as práticas das tradições de sabedoria desse modo.
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