por Marcus Telles
Não conheço ninguém que deixaria de dar atenção à própria avó se ela estivesse sentada sozinha na sua frente. Mas basta colocarmos algumas paredes, carros e pessoas vendendo pipoca entre nós, e, pronto, facilmente passamos semanas sem telefonar para ela.
Na Carta Sobre os Cegos, de 1749, Diderot pensa sobre essa questão: uma sociedade toda composta por cegos, imagina ele, teria uma moralidade totalmente diferente da nossa; roubar, por exemplo, seria muito mais grave, já que um cego precisa de permanência mais do que aqueles que vêem. (Nossa problema é outro: é projetar na realidade mais permanência do que ela efetivamente tem, e organizar nossas ações a partir dessa expectativa equivocada.) Outros exercícios imaginativos também ressaltam essa relação contingente entre o mundo aparentemente “real” e os sentidos: Borges já imaginou como seria um universo feito apenas de sons; em O Perfume, de Patrick Süskind, Jean-Baptiste Grenouille passa alguns anos experienciando um universo mental de perfumes construído por ele próprio, enquanto seu corpo permanece em uma caverna. Já em O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, todas as crianças da Terra passam a operar com as mentes totalmente desconectadas de seus sentidos físicos, enquanto seus corpos se movem aleatoriamente por aí. Nenhuma dessas experiências é menos real do que aquelas que naturalizamos, e, de fato, nossas “viajadas” durante uma conversa ou enquanto andamos na rua, sem falar nos sonhos, são micro-experiências cotidianas muito próximas de um ou outro desses casos. Se podemos estabelecer esses diferentes tipos de relação entre nossos sentidos, nossas formações mentais e nossa moralidade, e se os modos habituais pelos quais fazemos são tão construídos quanto qualquer outro, então por que não fazer isto ativamente?
Da mesma forma, a visão deludida tomada como base nos oculta o desenrolar do tempo. Jamais deixaríamos de dar atenção a uma pessoa que irá morrer em breve. O problema é que não lembramos disso: quantas de nossas avós irão viver mais de uma década? De fato, a pergunta poderia ser mais radical: você deixaria de dar atenção a seres que estão a menos de cem anos de morrer? Eu jamais faria isso, só que sempre faço.
Essa cena de Family Guy é um exemplo bom de como nos enganamos ao não perceber a natureza processual dos acontecimentos:
Se deixo minha mente se limitar pelo espaço ao meu redor, não me conecto aos seres e processos que estão mais longe e que não são menos reais por isso. O mundo vira uma sala, uma tela, um estádio, e as infinitas possibilidades se reduzem às possibilidades de salas, telas e estádios. Também vale para o tempo: se deixo minha mente acreditar na substancialidade atemporal do que vejo agora, não percebo que o corpo que me atrai se formou e irá se dissolver, que a mercadoria que me atrai foi feita com um tipo de trabalho de não quero apoiar, que o plástico de agora é o mesmo que irá parar nos oceanos, etc. Tanto o trabalho quanto o consumo no capitalismo, por exemplo, operam e demandam essa lógica de alienação.
Sem imaginação, não é possível pensar a realidade. Para uma mente desatenta, um produto é só um produto, uma sala é o mundo inteiro, os defeitos que uma pessoa expressa em um dado momento são o limite do possível para essa pessoa, o atual modo de produção é o limite do possível para o mundo.
Tendo isso em mente, podemos nos dedicamos ativamente a cultivar uma mente mais esperta, mais ativa, que se pergunta: quem está sofrendo sem que eu tenha percebido? o que eu poderia fazer agora? o que tenho a oferecer? quem pode me ajudar? quais possibilidades estão abertas nesse exato momento? que valores e ideias estou promovendo com a minha fala? que impacto essa ação terá sobre os seres? que condições favoráveis irão se dissolver em breve? o que eu não estou vendo? que causas e condições formaram o atual cenário, que ações fazer para gerar outras condições?
“Viver o momento presente” não é a mesma coisa que “tomar a percepção presente como realidade”, porque o próprio ato de projetar uma essência na percepção presente já adiciona a ela vários significados que não são objetivos, por mais que pareçam. As coisas são processos, não têm substância. É preciso olhar as coisas e ver os processos que geram a aparência de coisas.
(Na parte 2: sobre “juntar os pontos” em um nível coletivo.)
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Louis CK explora bem como deixamos nossa moralidade ser moldada pelo aspecto material dos ambientes: